O Sofrimento Humano (O Problema do Sofrimento, C. S. Lewis)

O Sofrimento Humano

Foram os homens, e não Deus, que inventaram a tortura, os chicotes, as prisões, a escravidão, as armas, as baionetas e as bombas. A pobreza e o excesso de trabalho são produtos da avareza ou da estupidez humana e não uma distorção da natureza. De todo modo, porém, existe ainda muito sofrimento que não pode ser atribuído a nós mesmos. Mesmo que toda dor fosse causada pelo ser humano, ainda assim gostaríamos de saber a razão para a tolerância por parte de Deus no que diz respeito à tortura que os indivíduos malvados infringem aos seus semelhantes.

Dizer, que o bem, para criaturas como somos agora, significa principalmente um bem corretivo ou terapêutico, é uma resposta incompleta. Nem todos os remédios são desagradáveis de tomar, ou, caso o sejam, esse é em si mesmo um dos fatos negativos para o qual gostaríamos de saber a razão.

Antes de prosseguir devo voltar a um detalhe que salientei no Capítulo II. Disse ali que o sofrimento, abaixo de um certo nível de intensidade, não era sentido e poderia chegar até mesmo a ser apreciado. Você talvez replique: "Nesse caso eu não o chamaria por esse nome", e talvez esteja certo. Mas a verdade é que a palavra Sofrimento possui dois sentidos  que devem ser agora diferenciados

A. Um tipo de sensação particular, provavelmente transmitida por fibras nervosas especiais, e reconhecida pelo paciente como sendo esse tipo de sensação quer goste ou não dela (e.g., a leve dor em meus membros seria reconhecida como dor, mesmo que não fizesse objeção a ela).

B. Qualquer experiência, seja física ou mental, que desgoste o paciente.

Note-se que qualquer Dor no sentido A se torna uma dor no sentido B se se elevar além de um certo nível de intensidade, mas que as dores no sentido B não têm necessidade de sê-lo no sentido A. A dor em B é, de fato, um sinônimo de "sofrimento", "angústia", "tribulação", "adversidade", ou "dificuldade", e é nessa relação que surge o problema do sofrimento. No restante deste livro o Sofrimento será usado no sentido B e incluirá todos os tipos do mesmo. Não iremos tratar mais do sentido A.O melhor bem da criatura é entregar-se ao seu Criador - desempenhar intelectual, volitiva e emocionalmente esse relacionamento dado no simples fato de ser uma criatura. Quando age nessa conformidade ela é boa e feliz. A fim de não julgarmos que isto traga sofrimento, esta espécie de bem se inicia num nível muito superior ao das criaturas, pois o próprio Deus, como Filho, desde a eternidade entrega a Deus, como Pai, mediante a obediência filial, o ente que o Pai, pelo amor paternal, gera eternamente no Filho. Foi este o padrão para o qual o homem foi feito, aquele que deve imitar - que o homem paradisíaco imitou realmente - e toda vez que a vontade conferida pelo Criador é assim perfeitamente ofertada de volta em obediência jubilosa e causadora de alegria por parte da criatura, aí, sem dúvida, está o Céu, e daí emana o Espírito Santo.

No mundo, como o conhecemos hoje, o problema está em como recobrar esta auto entrega. Não somos apenas criaturas imperfeitas que devem ser aperfeiçoadas: nós somos, como disse Newman rebeldes que precisam depor as armas. A primeira resposta, então, à pergunta da razão pela qual nossa cura deve ser penosa, é que render a vontade que por tanto tempo reivindicamos como nossa é, em si mesmo, uma dor cruciante, onde quer e como seja isso levado a efeito. Até mesmo no Paraíso fiz supor que exista uma auto aderência mínima a ser vencida, embora a vitória e a rendição constituíssem ali uma expressão de arrebatamento.

Render, porém, uma vontade inflamada e tumefata por anos de usurpação é uma espécie de morte. Todos podemos lembrar desta vontade como o era na infância. Os acessos amargos e prolongados de raiva a qualquer contrariedade. A explosão em lágrimas ardentes, o desejo negro e satânico de matar ou morrer em lugar de render-se. Assim sendo, o tipo mais antiquado de governanta ou de pais estava muito certo em pensar que o primeiro passo na educação é "esmagar" a vontade da criança". Os métodos por eles empregados foram com freqüência errados; mas não observar essa necessidade é, penso eu, excluir-se de toda compreensão das leis espirituais. E se agora que somos crescidos não gritamos nem batemos tanto os pés, isso se deve parcialmente ao fato de as pessoas mais velhas terem dado início ao processo de esmagar ou matar nossa obstinação no berço, e parcialmente porque essas mesmas paixões tomam agora formas mais sutis e são mais peritas em evitar a morte mediante vá- rias "compensações". Daí a necessidade de morrer diariamente: por mais que julguemos ter esmagado o "eu" rebelde, vamos sempre descobrilo vivo. O fato de neste processo não poder apresentar-se sem sofrimento é suficientemente testemunhado pela própria história da palavra "mortificação".

Mas esta dor intrínseca, ou morte, ao mortificar o "eu" usurpado, não constitui toda história. A mortificação, de maneira paradoxal, embora seja em si mesma um sofrimento, é facilitada pela presença da dor no seu contexto. Em minha opinião isto acontece principalmente de três modos.

O espírito humano não começará sequer a tentar render a vontade enquanto tudo parecer que está correndo bem. O erro e o pecado possuem ambos esta propriedade, quanto mais profundos são tanto menos as suas vítimas suspeitam de sua existência; são um mal mascarado. O sofrimento é um mal às claras, indiscutível; todo homem sabe que algo está errado quando sente dor. Nem mesmo o masoquista é uma exceção. O sadismo e o masoquismo isolam respectivamente, e depois exageram um "momento" ou "aspecto" do impulso sexual normal. O sadismo exagera o aspecto da captura e do domínio até o ponto em que o pervertido só se satisfaz maltratando o ser amado, como se dissesse, "sou seu senhor, posso até atormentá-lo". O masoquismo, por sua vez, exagera o aspecto complementar e oposto, e diz "estou de tal forma cativo que acolho até mesmo o sofrimento às suas mãos".

A não ser que a dor fosse sentida como um mal - como um ultraje, sublinhando o completo senhorio da outra parte - ela deixaria de ser um estímulo erótico para o masoquista. E a dor não é apenas um mal identificável, mas um mal impossível de ignorar.

Podemos repousar satisfeitos em nossos pecados e estupidez; e quem quer que tenha observado os glutões engolindo os alimentos mais delicados como se não soubessem o que comiam, irá admitir que podemos ignorar até mesmo o prazer. Mas o sofrimento insiste em ser notado. Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso sofrimento: ele é o seu megafone para despertar um mundo surdo. Um homem mau, mas feliz, é um indivíduo que não tem a mínima noção de que seus atos não são uma "resposta", de que eles não se conformam às leis do universo.

Uma percepção desta verdade se encontra oculta no sentimento humano universal de que os perversos devem sofrer. Não adianta torcer o nariz a este sentimento, como se fosse inteiramente ignóbil. Em seu nível mais brando ele apela para o senso de justiça de cada um. Certa vez quando meu irmão e eu estávamos desenhando na mesma mesa, quando éramos pequenos, eu movi o braço e meu cotovelo bateu nele fazendo com que fizesse um risco no meio do seu desenho; o assunto foi resolvido amigavelmente quando permiti que fizesse uma linha de igual tamanho no meu trabalho. Isto é, fui colocado "no lugar dele", podendo ver a minha negligência pelo outro lado. Num nível mais severo a mesma idéia se manifesta como um "castigo retributivo" ou "dar ao homem o que ele merece". Alguns indivíduos esclarecidos gostariam de banir todo conceito de retribuição ou mérito de sua teoria do castigo e atribuir o seu valor inteiramente à intimidação de outros ou à reforma do próprio criminoso.

Essas pessoas não percebem que agindo assim tomam todo castigo injusto. O que pode ser mais imoral do que infligir sofrimento sobre mim com o intuito de intimidar outros se eu não mereço isso? E se o mereço, você está então admitindo as reivindicações da "retribuição". E o que pode ser mais ultrajante do que agarrar-me e submeter-me a um processo desagradável de aperfeiçoamento moral sem meu consentimento, a não ser (mais uma vez) que o mereça?


Num terceiro nível temos a paixão vingativa - a sede de vingança. Isto é naturalmente um mal e expressamente proibido aos cristãos. Mas, talvez, em nossa discussão do sadismo e masoquismo já foi explicado que as coisas mais repulsivas na natureza humana são perversões de outras boas ou inocentes. A coisa boa de que a paixão vingativa é uma perversão surge com surpreendente clareza na definição de Hobbe da "Represália": "o desejo de, ferindo outrem, fazer com que este condene algum ponto em sua própria pessoa".

A vingança perde de vista o objetivo no meio empregado, mas o seu propósito não é inteiramente mau - pois quer que o mal existente no perverso seja para este o que é para todos os demais. Isto é provado pelo fato de que o vingador não quer que a parte culpada sofra simplesmente, mas que sofra às suas mãos, e que saiba disso e saiba também a razão. Nasce assim o impulso de atormentar o culpado pelo seu crime no momento da vingança e também as expressões naturais como estas: "Fico pensando se gostaria que fizessem a ele a mesma coisa" ou "vou ensiná-lo". Pela mesma razão, quando vamos abusar de alguém com palavras, dizemos que "ele vai saber o que penso a seu respeito".

Quando nossos ancestrais se referiam às dores e tristezas como sendo a "vingança" de Deus sobre o pecado, não estavam necessariamente atribuindo paixões negativas a Deus, mas talvez reconhecendo os elementos positivos na idéia de retribuição. Até que o perverso descubra que o mal se acha indiscutivelmente presente na sua vida, na forma de sofrimento, ele está envolto em uma ilusão. Uma vez que a dor o desperte, ficará sabendo que, de uma ou outra forma, se acha "em oposição" ao universo real: ou ele se rebela (com a possibilidade de um resultado mais claro e um arrependimento mais profundo num estágio posterior) ou então tenta fazer um ajustamento, no qual, se persistir, chegará à religião.

É certo que nenhum desses efeitos é tão certo agora como o era na época em que a existência de Deus (ou mesmo dos deuses) era mais amplamente conhecida, mas mesmo em nossos dias nós o vemos operando. Os próprios ateus se rebelam e expressam, como Hardy e Houseman, sua raiva contra Deus embora (ou porque) Ele a seu ver não exista. Outros ateus, como o Sr. Huxley, são impelidos pelo sofrimento a levantar todo o problema da existência e a descobrir algum meio de chegar a um acordo com ele, o qual, mesmo não sendo cristão, é quase infinitamente superior à satisfação ilusória de uma vida profana. Não há dúvida de que o sofrimento como o megafone de Deus é um instrumento terrível, podendo levar à rebelião final, que não dá lugar ao arrependimento. Mas ele fornece também a única oportunidade que o perverso pode ter de emendar-se. Ele remove, o véu, planta a bandeira da verdade na fortaleza de uma alma rebelde.

Se a primeira operação do sofrimento destroça a ilusão de que tudo está bem, a segunda faz cair a ilusão de que aquilo que temos, quer seja bom ou mau em si mesmo, é nosso e basta para nós. Todos sabem como é difícil voltar nossos pensamentos para Deus quando tudo vai bem conosco. A expressão "temos tudo o que queremos" é uma frase terrível quando esse "tudo" não inclui Deus. Nós achamos que Deus é uma interrupção.

Como diz Sto. Agostinho em algum lugar, "Deus quer dar-nos algo, mas não pode, porque nossas mãos estão cheias - não há nelas lugar para colocá-lo". Ou como afirmou um amigo meu: "consideramos Deus como um aviador considera o seu pára-quedas; ele o leva para as emergências, mas espera jamais ter de usá-lo".

Todavia, Deus, que nos fez, sabe o que somos e que nossa felicidade está nEle. Nós porém não a buscamos nEle enquanto permitir-nos qualquer outro recurso onde ela possa plausivelmente ser procurada. Enquanto aquilo que chamamos de "nossa própria vi- da" permanecer agradável, não iremos entregá-la a Ele. O que pode então Deus fazer em nosso benefício senão tomar "nossa vida" menos agradável, e remover as fontes plausíveis da falsa felicidade? É justamente aqui, onde a providência divina parece à primeira vista ser mais cruel, que a humildade divina, o rebaixamento do Altíssimo merece o maior louvor.

Ficamos perplexos ao ver a desgraça caindo sobre pessoas decentes, inofensivas, dignas - sobre mães de família capazes, esforçadas, ou trabalhadores diligentes, econômicos, sobre aqueles que se empenharam tanto e com tanta honestidade para obter o seu pequeno quinhão de felicidade e agora parecem estar começando a gozá-lo com plenos direitos. Como posso dizer com suficiente ternura o que precisa ser dito? Não importa que eu saiba que, aos olhos de cada leitor hostil, é como se eu fosse pessoalmente responsável por todos os sofrimentos que tento explicar - da mesma forma que, até hoje, todos falam como se Sto. Agostinho quisesse que as crianças não-batizadas fossem para o inferno. Importa porém enormemente se eu afastar alguém da verdade.

Quero implorar ao leitor que tente crer, embora apenas por um momento, que o Deus que fez todas essas pessoas cheias de mérito, possa estar realmente certo quando pensa que sua modesta prosperidade e a felicidade de seus filhos não bastam para fazê-las abençoadas: que tudo isso deve deixá-las no final, e que se não tiverem aprendido a conhecê-lO sentir-se-ão miseráveis. E assim Ele as perturba, advertindo-as antecipadamente de uma insuficiência que um dia terão de descobrir. A vida para elas e suas famílias se interpõe entre as mesmas e o reconhecimento de sua necessidade; Ele torna essa vida menos suave paia elas. Chamo a isto de humildade divina porque é deprimente procurar Deus quando o navio está afundando debaixo de nós; deprimente achegar-nos  a Ele como um último recurso, oferecer nossa pessoa quando não vale mais a pena guardá-la.

Se Deus fosse orgulhoso Ele jamais nos aceitaria nesses ter- mos, mas Ele não é orgulhoso, Ele se abaixa para conquistar, Ele nos aceita embora tenhamos mostrado que preferimos tudo o mais a Ele, e nos achegamos porque agora não há "nada melhor" que possamos ter. A mesma humildade é manifestada através de todos os apelos divinos aos nossos temores, o que perturba alguns leitores das Escrituras. É bem pouco simpático para Deus que O escolhamos como uma alternativa para o inferno: mas até mesmo isto ele aceita. A ilusão de auto-suficiência da criatura deve, em seu próprio benefício, ser destruída; e pelas dificuldades ou medo das dificuldades na terra, pelo medo indisfarçado das chamas eternas. Deus a destroça "não levando em conta a diminuição de sua glória". Os que desejariam que o Deus da Bíblia fosse mais puramente ético, não sabem o que estão pedindo. Se Deus fosse um kantista, que não quisesse aceitar-nos senão quando nos aproximássemos dEle baseados nos motivos mais puros e melhores, quem poderia ser então salvo? E esta ilusão de auto-suficiência pode ser mais forte em algumas pessoas muito honestas, bondosas e temperantes, e sobre elas, então, a desgraça deve cair.

Os perigos da auto-suficiência aparente explicam por que Nosso Senhor considera os vícios dos fracos e dissipados com muito maior tolerância do que os vícios que levam ao sucesso mundano. As prostitutas não correm o risco de considerar sua vida presente tão satisfatória que não possam voltar-se para Deus: os orgulhosos, os avarentos, os que possuem auto-retidão, correm esse perigo.

A terceira operação do sofrimento é um pouco mais difícil de entender. Todos irão admitir que a escolha é essencialmente consciente. A escolha envolve o conhecimento daquilo que se escolhe. O homem paradisíaco optou sempre por seguir a vontade de Deus.

Ao agir assim, ele também gratificou seu próprio desejo, tanto porque todos os atos exigidos dele eram, de fato, agradável às suas inclinações irrepreensíveis, como também porque o serviço de Deus era por si mesmo seu mais profundo prazer, sem o qual todas as alegrias seriam insípidas para ele. A pergunta: "Faço isto para agradar a Deus ou apenas porque gosto?" não surgiu então, desde que fazer coisas para Deus era o que ele principalmente apreciava. Sua vontade dirigida para Deus cavalgava a sua felicidade, como se esta fosse um animal bem orientado, enquanto a nossa vontade, quando estamos felizes, é envolvida na felicidade como um navio descendo uma correnteza.

O prazer era então uma oferta aceitável a Deus, porque a oferta era um prazer. Nós, porém, herdamos todo um sistema de desejos que não contradizem necessariamente a vontade de Deus mas que, depois de séculos de autonomia usurpada, firmemente a ignora.

Se aquilo que gostamos de fazer é de fato a coisa que Deus quer que façamos, essa não é porém a razão para que a realizemos, ela continua sendo apenas uma simples e feliz coincidência. Não podemos perceber, portanto, que estamos agindo, principalmente, por causa de Deus, a não ser que o material da ação seja contrário às nossas inclinações, ou (em outras palavras) penoso, e aquilo que não sabemos que estamos escolhendo, não podemos escolher. O ato completo da rendição do "eu" a Deus exige então sofrimento: este ato, para ser perfeito, deve proceder da vontade pura de obedecer, na ausência ou em oposição à nossa tendência. É absolutamente impossível render o "eu" fazendo aquilo de que gostamos; sei disso muito bem pela minha própria experiência no momento. Quando me propus a escrever este livro esperava que a vontade de obedecer o que poderia ser uma "orientação" tivesse pelo menos algum lugar em meus motivos. Mas agora que estou inteiramente mergulhado nele, tomou-se mais uma tentação do que um dever. Posso ainda esperar que o preparo deste livro seja, de fato, conforme a vontade de Deus: mas argumentar que estou aprendendo a render-me ao fazer o que para mim é tão empolgante seria ridículo.


Pisamos aqui em um terreno bastante difícil. Kant era de opinião que nenhum ato tinha valor moral a não ser que fosse realizado com base na mais pura reverência pela lei moral, isto é, sem inclinações, e ele foi acusado de uma "disposição de espírito mórbida" que mede o valor de um ato pelo desgosto que provoca. Toda opinião popular entretanto apóia realmente Kant. Ninguém admira um homem por fazer algo de que goste: as próprias palavras "mas ele gosta disso" implicam no corolário: "Portanto não existe mérito".

Todavia, em oposição a Kant se coloca a verdade evidente, notada por Aristóteles, que quanto mais virtuoso se torna o homem tanto mais ele aprecia os atos de virtude. O que o ateu deveria fazer com relação a este conflito entre a ética do dever e a da virtude, não sei, mas, como cristão, sugiro a seguinte solução.

Tem sido algumas vezes perguntado se Deus ordena certas coisas porque são boas, ou se certas coisas são boas porque Deus as ordena. Ao lado de Hooker e contra o Dr. Johnson, eu apoio enfaticamente a primeira alternativa. A segunda poderia levar à abominável conclusão (alcançada, penso eu, por Paley) que a piedade é boa apenas porque Deus a ordenou de modo arbitrário - pois poderia igualmente ter ordenado que nós odiássemos tanto a Ele como uns aos outros e que o ódio seria então algo justo. Acredito, pelo contrário, que "erram aqueles que julgam que em relação à vontade de Deus para fazer isto ou aquilo não haja qualquer razão subjacente a essa vontade"

A vontade de Deus é determinada pela Sua sabedoria que sempre discerne, pela Sua bondade que sempre abrange, o que é intrinsecamente bom. Mas quando dizemos que Deus ordena as coisas apenas porque são boas, devemos acrescentar que uma das coisas intrinsecamente boas é o fato de as criaturas racionais deverem render-se livremente ao seu Criador em obediência. O conteúdo de nossa obediência - aquilo que nos é ordenado fazer - será sempre algo intrinsecamente bom, algo que deveríamos fazer, mesmo se (por uma suposição impossível) Deus não tivesse ordenado isso. Mas em adição ao conteúdo, a mera obediência é também intrinsecamente boa, pois, ao obedecer, a criatura racional representa conscientemente o seu papel de criatura, inverte o ato pelo qual caímos, age em sentido inverso de Adão, e volta.

Concordamos assim com Aristóteles que aquilo que é intrinsecamente certo pode ser perfeitamente agradável, e quanto melhor o homem, mais gostará dele; mas estamos de acordo com Kant a ponto de afirmar que existe um ato certo - o da auto-entrega - que não pode ser desejado ao máximo pelas criaturas decaídas a não ser que seja desagradável. E devemos acrescentar que este ato de retidão inclui toda demais justiça, e que o cancelamento supremo da queda de Adão, o movimento de "recuo a toda velocidade" pelo qual retraçamos nossa longa jornada do Paraíso, o desfazer do velho e duro nó, deve ser feito quando a criatura, sem qualquer desejo de apoiá-lo, reduzida à simples vontade de obedecer, aceita o que é contrário à sua natureza, e faz aquilo que só pode ser motivado por uma única coisa. Um ato assim pode ser descrito como um "teste" da volta da criatura a Deus: por essa razão nossos pais disseram que as tribulações foram "enviadas para provarnos". Um exemplo conhecido é a "provação" de Abraão quando recebeu ordem para sacrificar Isaque. Não me preocupo agora com a historicidade ou moral dessa história, mas com a pergunta óbvia: "Se Deus é onisciente ele deveria ter sabido o que Abraão iria fazer, sem necessidade de qualquer experiência; por quê, então, esta tortura desnecessária?" Mas como salienta Sto. Agostinho, o que quer que Deus soubesse, Abraão de qualquer forma não sabia que sua obediência podia suportar tal ordem até que o acontecimento o ensinasse: e a obediência que não sabia que iria escolher, não pode ser dito que escolhesse.

A realidade da obediência de Abraão foi o ato em si; e o de que Deus tinha conhecimento sabendo que Abraão "obedeceria" foi a obediência real dele naquele monte, naquele momento. Dizer que Deus "não precisaria ter realizado a experiência" é dizer que, pelo fato dele saber, a coisa conhecida por Deus não precisaria existir.

Se a dor algumas vezes destroça a falsa auto-suficiência da pessoa, todavia na suprema "Provação" ou "Sacrifício" ela lhe ensina a auto-suficiência que verdadeiramente deveria ser sua - a "força, que, quando dada pelo Céu, pode ser chamada sua propriedade": pois então, na ausência de todos os motivos e apoios simplesmente naturais, ela age nessa força, e só nela, que lhe é conferida por Deus mediante sua vontade rendida. .O que é humano irá tornar-se realmente criativo e realmente nosso quando for inteiramente de Deus, e este é um dos muitos sentidos em que aquele que perde a sua alma irá achá-la. Em todos os demais atos nossa vontade é alimentada pela natureza, isto é, através de coisas criadas e não pelo "eu" - através dos desejos provocados por nosso organismo e hereditariedade. Quando agimos por nós 1mesmos, isto é, por Deus em nós, somos colaboradores ou instrumentos vivos da criação: essa a razão pela qual um ato assim desfaz com poder desagregador o aspecto de falta de criatividade que Adão transmitiu a sua espécie. Assim sendo, da mesma forma que o suicídio é a expressão típica do espírito estóico, e a luta a do espírito guerreiro, o martírio sempre permanece como o ato supremo e a perfeição do cristianismo. Este grandioso ato foi iniciado para nós, feito a nosso favor, exemplificado para nossa imitação, e comunicado inconcebivelmente a todos os crentes, por Cristo no Calvário.

O grau de aceitação da morte alcança ali os limites máximos do imaginável e talvez os supere; não apenas todos os suportes naturais, mas a própria presença do Pai a quem o sacrifício é feito abandona a vítima, e a sua entrega a Deus não vacila embora Ele a "desampare".

A doutrina da morte que descrevo não é peculiar ao cristianismo. A natureza escreveu-a, ela mesma, em grandes letras através do mundo no repisado drama da semente sepultada e que ressurge na planta. As mais antigas comunidades agrícolas talvez a tenham aprendido da natureza e com sacrifícios animais, ou humanos, demonstraram durante séculos que "sem o derramamento de sangue não há remissão"; (Hb 9:22) e embora, a princípio, tais conceitos possam ter considerado apenas as colheitas e a descendência da tribo, vieram mais tarde, nos Mistérios, a preocupar-se com a morte e ressurreição espirituais do indivíduo. O ascético indiano, mortificando seu corpo num leito de pregos, ensina a mesma lição; o filósofo grego nos fala que a vida sábia é "uma prática da morte".O pagão sensível e nobre dos tempos modernos faz com que_ seus deuses imaginários "morram para a vida". O Sr. Huxley explica o "desprendimento". Não podemos escapar da doutrina deixando de ser cristãos. É um "evangelho eterno revelado aos homens onde quer que estes tenham buscado, ou suportado, a verdade: ela é o próprio nervo da redenção, que a sabedoria dissecadora em qualquer tempo e em todos os lugares expõe; o conhecimento do qual não se pode escapar: que a Luz que ilumina todo homem grava sobre a mente daqueles que questionam seriamente o propósito do universo. A peculiaridade da fé cristã não é ensinar esta doutrina mas interpretá-la, de várias maneiras, a fim de torná-la mais tolerável.

O cristianismo nos ensina que a terrível tarefa já foi de alguma forma realizada para nós - que uma mão de mestre está prendendo a nossa enquanto tentamos traçar as letras difíceis e que nosso texto pode ser apenas uma "cópia" e não o original. De novo, onde outros sistemas expõem nossa natureza total à morte (como na renúncia budista), o cristianismo exige apenas que endireitemos uma imperfeição de nossa natureza, e não entra em conflito, como Platão, com o corpo como tal, nem com os elementos psíquicos de nossa formação. E o sacrifício, em sua suprema realização, não é exigido de todos. Os confessores assim como os mártires são salvos e algumas pessoas idosas, de cujo estado de graça dificilmente podemos duvidar, parecem ter atravessado os seus setenta anos com surpreendente facilidade.

O sacrifício de Cristo é repetido ou imitado pelos seus seguidores em graus variados, desde o martírio mais cruel até a auto submissão intencional, cujos sinais exteriores não os diferenciam dos frutos comuns da temperança e bom senso. As causas desta distribuição desconheço; mas de nosso ponto de vista presente deveria ficar claro que o problema real não é o fato de algumas pessoas humildes, piedosas, crentes, sofrerem, mas sim a razão de outras não sofrerem. O próprio Senhor, como pode ser lembrado, explicou a salvação dos afortunados neste mundo, referindo-se à onipotência insondável de Deus (Mc 10:27).

Todos os argumentos justificando o sofrimento provocam amargo ressentimento contra o autor. Você gostaria de saber como me comporto quando sofro, e não quando escrevo sobre isso. Não precisa ficar imaginando porque vou contar-lhe. Sou um grande covarde.

Mas, que ligação .isso tem com o propósito em mente? Quando penso em dor - naquela ansiedade que corrói como fogo e na solidão que se estende como um deserto, a triste rotina da miséria monótona, as dores fundas que escurecem todo o nosso horizonte ou aquelas repentinas e enjoativas que arrancam o coração de um só golpe, dores que já parecem ser intoleráveis e de súbito aumentam, dores furiosas como se fossem picadas de escorpião que provocam movi- mentos adoidados em alguém que parecia meio morto por causa das torturas já sofridas - isso "quase abate o meu espírito".

 Se conhecesse algum meio de escapar, me arrastaria através de esgotos para descobri-lo. Mas, de que adianta falar-lhe sobre os meus sentimentos? Você já os conhece: são os mesmos que os seus. Não estou discutindo que a dor não seja penosa. A dor magoa. É isso que a palavra significa. Estou apenas tentando mostrar que a velha doutrina cristã de nos "aperfeiçoarmos através do sofrimento" (Hb 2:10) não é inacreditável. Provar que ela é agradável está fora de minhas cogitações.

Para avaliar a credibilidade da doutrina devem ser observados dois princípios. Em primeiro lugar, devemos ter em mente que o momento atual da dor no presente é apenas o centro do que pode ser chamado de sistema de tribulação total que se amplia através do temor e da piedade. Os efeitos positivos que essas experiências possam ter dependem do centro; assim, mesmo que a dor em si não tivesse valor espiritual, mas o medo e a piedade tivessem, a dor te- ria de existir para que pudesse haver algo a ser temido e compadecido.

Não se pode também duvidar que a piedade e o temor nos ajudam em nossa volta à obediência e à caridade. Todos nós já experimentamos o efeito da piedade, tornando mais fácil para nós amar os que não provocam amor, isto é, amar ao próximo não porque ele seja de qualquer forma agradável a nós, mas por ser nosso irmão. O benefício do medo que a maioria de nós aprendeu durante o período de "crise" que levou à guerra atual.

Minha própria experiência é mais ou menos a seguinte. Estou progredindo ao longo da estrada da vida em minha condição usual, satisfeita e decaída, absorvido num encontro agradável com amigos marcado para amanhã ou um pouco de trabalho que estimula minha vaidade hoje, um feriado ou um livro novo, quando de repente uma pontada no abdome que pode indicar doença séria, ou uma notícia nos jornais ameaçando o mundo de destruição, faz ruir o meu castelo de cartas. Sinto-me a princípio vencido, com todas as minhas pequenas alegrias desfeitas como brinquedos destroçados. A seguir, devagar e com relutância, pedaço a pedaço, tento enquadrar- me no estado de espírito em que deveria sempre estar. Chamo minha atenção para o fato de que todos esses brinquedos não tinham o propósito de apossar-se do meu coração, que meu bem real está num outro mundo e que meu único e verdadeiro tesouro é Cristo. E, talvez, pela graça de Deus, venha a ter êxito, e durante um dia ou dois me tomo uma criatura que depende conscientemente de Deus e que extrai a sua força das fontes certas. Mas no momento em que a ameaça desaparece, toda a minha natureza salta de volta aos brinquedos: fico até ansioso, que Deus me perdoe, para banir de minha mente a única coisa que me sustentou sob a ameaça, porque ela está agora associada à miséria daqueles poucos dias.

Fica então muito clara a terrível necessidade da tribulação. Deus me teve apenas por quarenta e oito horas e mesmo assim à força de ameaças, de tirar de mim tudo o mais. No momento em que Ele embainha a espada, me comporto como um cachorrinho quando o odiado banho acaba - sacudo-me o melhor que posso e corro a recuperar minha confortável sujeira, se não for no monturo mais próximo, pelo menos no primeiro canteiro de flores. É por isso que as tribulações não podem cessar até que Deus nos veja transformados ou julgue que nossa transformação é agora impossível.

Em segundo lugar, quando estamos considerando a dor em si - o centro de todo o sistema tribulativo - devemos ter cuidado de aplicar-nos àquilo que conhecemos e não ao que imaginamos. Esta é uma das razões por que a parte central deste livro é dedicada ao sofrimento humano, e o dos animais foi relegado a um capítulo especial. Nós conhecemos o sofrimento humano, enquanto só podemos especular sobre o dos animais. Mesmo dentro da raça humana é preciso extrair nossa evidência de circunstâncias que pudemos observar. A tendência deste ou daquele novelista ou poeta pode representar o sofrimento como absolutamente negativo em seus efeitos, como se produzisse e justificasse toda espécie de maldade e brutalidade no sofredor. E, naturalmente, a dor, assim como o prazer, podem ser recebidos dessa forma: tudo o que é dado a uma criatura com livre-arbítrio deve ter dois gumes, não pela natureza do doador ou do que foi dado, mas pela natureza do recipiente. Os resultados negativos da dor podem ser multiplicados se os observadores ensinaram constantemente aos que estão sofrendo que esses são exatamente os resultados certos e nobres que devem manifestar. A indignação quanto ao sofrimento de outrem, embora seja uma paixão generosa, precisa ser bem controlada éi fim de não roubar a paciência e humildade dos que sofrem e semear a ira e o cinismo em seu lugar.

Não estou, porém, convencido de que o sofrimento, se lhe for poupada tal indignação intrometida e vicária, tenha qualquer tendência natural para produzir tais males. Não achei que as trincheiras estivessem mais cheias de ódio, egoísmo, rebelião e desonestidade do que qualquer outro lugar. Vi uma grande beleza de espírito em alguns indivíduos que muito sofreram. Vi homens, que no correr dos anos se tornaram melhores e não piores, e vi a última doença produzir tesouros de força e mansidão por parte de alguns que bem pouco prometiam. Observo em personagens históricos amados e reverenciados, como Johnson e Cowper, traços que seriam admitidamente intoleráveis caso tivessem sido eles mais felizes. Se o mundo for de fato um "vale de formação de almas", ele parece em termos gerais estar fazendo o seu trabalho. Quanto à pobreza - a aflição que atual ou potencialmente inclui todas as demais aflições - não ousaria falar por mim mesmo; e os que rejeitam o cristianismo não irão comover-se com a declaração de Cristo de que a pobreza é abençoada. Aqui, porém, um fato notável vem em minha ajuda. Os que repudiam com desdém o cristianismo como um simples "ópio do povo" desprezam os ricos, isto é, toda a humanidade exceto os pobres. Eles consideram os pobres como as únicas pessoas dignas de serem poupadas da "liquidação", e colocam neles a única esperança da raça humana. Mas isto não é compatível cem a crença de que os efeitos da pobreza sobre os que a sofrem são inteiramente negativos; implica até mesmo em que eles são bons. O marxista vê-se então concordando realmente com o cristão em relação a essas duas crenças que o cristianismo paradoxalmente exige - que a pobreza é abençoada, mas mesmo assim deve ser removida.